No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, as comunidades científica e política internacionais reconheceram a necessidade de repensar seriamente a ideia de ‘raça’, em razão da qual tinham acabado de ser cometidas as maiores atrocidades. A UNESCO promoveu o debate e o estudo interdisciplinares sobre a questão racial, resultando desse trabalho vários documentos (e.g., UNESCO, 1950 e UNESCO, 1951) que reenquadraram a ideia de ‘raça’ e denunciaram as falácias intelectuais subjacentes ao Holocausto.
A tendência dominante na reflexão contemporânea é para o reconhecimento de que ‘raça’ e a ‘etnia’ são categorias ou conceitos socialmente construídos e apropriados, o que significa que evoluem, sendo alvo de influências, competições e interesses (Simon e Piché, 2012). Deste modo, a definição de raça tem desafiado académicos ao longo das décadas, assumindo alguns autores que é impossível fixá-la (Garner, 2017). Fields, por exemplo, identifica a ‘raça’ como uma ideologia e, como tal, “melhor compreendida como sendo o vocabulário descritivo da existência quotidiana, através do qual as pessoas se dão conta da realidade social que habitam e recriam quotidianamente” (1990: 110). Ainda segundo esta autora, “nada herdado do passado poderia manter a raça viva se não a reinventássemos e rerritualizássemos constantemente para se adequar ao nosso território. Se a raça persiste hoje, é apenas porque continuamos a criá-la e recriá-la na nossa vida social, continuamos a verificá-la, e desse modo continuamos a necessitar de um vocabulário social que nos permita compreender, não o que os nossos antepassados fizeram naquele tempo, mas o que nós próprios escolhemos fazer agora” (1990: 118).
Importa, porém, reconhecer que independentemente da condição atribuída à noção de ‘raça’, o racismo toma-a por verdadeira e os comportamentos que emergem nesse quadro configuram a discriminação racial nas nossas sociedades. Vários autores identificam ‘raça’ entre aspas para indicar que há algo essencialmente problemático no uso deste termo (Miles, 1993: 41), ou seja, que é um conceito contingente e contestado (Garner, 2017: 24). Mas esta opção não é meramente terminológica e corresponde a uma orientação epistemológica não para as relações entre supostas ‘raças’ mas sim para os processos de racialização, ou seja, de como se produz e reproduz a maneira de ver o mundo em que uma tal categoria adquire sentido. Note-se, contudo, que a racialização não gera a perda do capital político e social de grupos étnico-raciais a partir das categorias que lhes foram atribuídas pelo grupo maioritário de uma dada sociedade (Gilroy, 2000: 52).
Em paralelo, a comunidade política desenvolveu a apologia da igualdade, tendo como um dos seus marcos a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948. Também na década de 1960, em resposta a incidentes de antissemitismo e a pressões de vários países africanos, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a adotou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Em resultado destes processos e de outros que tiveram o mesmo sentido, como o Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos da América, surge a chamada norma social antirracista, hoje virtualmente prevalente em todo o mundo. Neste ambiente, o racismo, que alguns autores têm comparado a um vírus (Vala e Pereira, 2012), entrou em mutação. À variante clássica, que assentava na biologia como fonte de legitimidade, sucederam-se variantes que buscam legitimidade em diferenças culturais (e.g., Vala, Lopes e Brito, 1999; Marques, 2007; Cabecinhas, 2008). A essencialização do outro, porém, permanece. Neste sentido, tem sido defendido que em paralelo a processos de racialização coexistem processos de etnicização, que são muito semelhantes em termos de funcionamento e de resultado, apesar de se basearem em pretextos diferentes.
O conceito de raça tem ainda vindo a ser utilizado para novos fins. Vale de Almeida faz notar que “uma vez estabelecida uma classificação dos níveis de identidade social, a Diferença pode ser estrategicamente mobilizada para se transformar em factor de reivindicação, em factor de reconhecimento das desigualdades criadas pela identificação da Diferença” (Almeida, 2007: 24). Ou seja, as minorias racializadas ou etnicizadas poderão adotar estrategicamente o essencialismo como recurso mobilizável a favor das suas agendas, à semelhança do que Gayatri Spivak propunha no combate ao sexismo (1984) ou como Erving Goffman já referia acerca da gestão do estigma (2004 [1963]). As visões sobre esta possibilidade de instrumentalizção da ‘raça’ para a promoção da igualdade social não são consensuais. No contexto deste debate, Jackson aponta o dilema ético que aflige os cientistas sociais face à opção que as próprias pessoas discriminadas possam fazer de se organizar em função de construções essencialistas (Jackson, 2000: 54).
Há autores que reconhecem ainda que embora conceitos como raça e etnicidade possam carecer de sustentação científica ou incorporar vieses ideológicos, a sua omissão pode prejudicar a análise (Resende, 2008). Isto é, ainda que durante décadas as classificações étnico-raciais tenham sido concebidas e usadas para segregar, definir hierarquias, estratificações e desigualdades (Simon, 2005), desde a viragem para o século XXI que a racionalidade e objetivos subjacentes à categorização étnico-racial da população se têm vindo a associar a objetivos de monitorizar e identificar fenómenos como o da discriminação de base racial e étnica, da exclusão e da segregação, e da definição de políticas mais inclusivas (Simon e Piché, 2012).
Na Europa esta viragem depara-se com o problema da ausência de dados oficiais que permitam a monitorização do fenómeno, como resultado da maioria dos Estados inibir ou formalmente impedir a recolha de dados considerados sensíveis. Apenas na Finlândia, Irlanda e Reino Unido a necessidade de recolha de dados étnicos se encontra consagrada na lei (Farkas, 2017: 15). A generalidade da informação que é utilizada para aferir se a estas categorizações correspondem desigualdades funciona através de aproximações indiretas (proxies) por via de nacionalidade, naturalidade do próprio, ou naturalidade dos progenitores. A adoção e uso de categorias étnico-raciais na produção estatística não são isentos de problemas ou desafios. Os países que assumem a recolha de dados étnico-raciais, fazem-no de forma díspar, tendo em comum o facto de as suas categorias estarem encastradas na sua história e refletirem complexas relações entre identidades, estereótipos, afiliações, reconhecimentos, desigualdades sociais, relações de poder e capital social (Simon e Piché, 2012). Acresce que muitos inquéritos e estatísticas nacionais chegam a estas variáveis por via das já referidas aproximações (proxies), com todas as limitações que daí resultam (Farkas, 2017: 16).
Em Portugal, o XXI Governo Constitucional criou no último ano um Grupo de Trabalho (Despacho n.º 7363/2018, de 3 de agosto) com o objetivo de “produzir recomendações que contribuam para os Censos de 2021, tendo em vista a incorporação, no questionário que lhe servirá de base, de uma formulação que caracterize a composição étnico-racial da população em Portugal”.
Em alternativa à recolha de dados de forma sistemática, têm sido promovidos estudos empíricos baseados em testes ou auditorias na tradição da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nestes, as definições de discriminação adotadas têm tendido a centrar-se no tratamento desigual injustificado de grupos ou pessoas (Bovenkerk, 1992: 2; Blank, Dabady e Citro, 2004: 39). Em 2017 foi publicado, sob a égide da DG JUST da União Europeia (UE), um relatório comparativo sobre a recolha de dados étnicos na UE que revela que mais de um quarto dos Estados-membros tinham à data realizado testes anónimos (Farkas, 2017: 33). Estes testes têm sido levados a cabo por órgãos para a promoção da igualdade de tratamento (equality bodies), nomeadamente na Holanda e em Malta, e outros organismos públicos (Farkas, 2017: 26 e 34). Em vários Estados-membros, como por exemplo a Bélgica, a República Checa, a Finlândia, a França, a Holanda, a Hungria, e a Suécia, os testes de discriminação são inclusive aceites em tribunal como meio de prova de discriminação (FRA, 2018).
Uma terceira alternativa é basear a investigação relativa à prevalência do fenómeno nos dados das queixas de discriminação que chegam aos órgãos para a promoção da igualdade de tratamento ou a outras organizações que intervêm neste domínio. Contudo, o volume destas queixas tende a corresponder a apenas uma fração residual do que será a discriminação real, como mostram os inquéritos à população (e.g., FRA, 2009 e FRA, 2017, analisado em Oliveira e Gomes, 2018: 281). Vários fatores poderão contribuir para que poucas vítimas apresentem queixa, estando normalmente esses dados sub-representados face à realidade (Peixe et al., 2008: 7).
Em Portugal o estudo do racismo e da discriminação de base racial e étnica teve o seu arranque com os trabalhos de Vala e colaboradores, nomeadamente com a obra Expressões dos Racismos em Portugal, originalmente publicado em 1999 e reeditado com um novo posfácio em 2015. Ao longo dos anos estes investigadores têm desenvolvido a tese da sobrevivência do racismo de formas subtis em contextos sociais onde formalmente vigora a norma antirracista. Identificam em Portugal a ocorrência de processos não apenas de heteroetnicização (perceção de diferenças culturais fortes entre um endogrupo nacional e um exogrupo que foi objeto de inferiorização racial explícita no passado), mas igualmente de ontologização (associação do exogrupo mais à esfera da natureza do que à da cultura) e de infra-humanização (atribuição ao exogrupo sobretudo de emoções primárias, ou seja, as que os humanos partilham com os animais) (Vala e Pereira, 2012: 55-57).
Ainda no âmbito da Psicologia Social, os trabalhos de Cabecinhas destacam também como a naturalização ou essencialização das categorias raciais e étnicas persistem na sociedade portuguesa – ainda que as tipologias raciais tenham sido abolidas há décadas –, e continuam a estruturar a opinião pública. Segunda a autora, as campanhas de sensibilização promovidas em Portugal desde a década de 1990 conduziram a discursos mais prudentes quanto às categorias raciais, mas não quanto às categorias étnicas. Desse modo, as diferenças culturais continuam a plasmar estereótipos e dicotomias subtis (Cabecinhas, 2002).
Por sua vez, no âmbito da Sociologia, Marques conclui que é possível identificar na sociedade portuguesa dois racismos diferentes: por um lado, o racismo desigualitário ou de inferiorização, cujas fontes podem ser encontradas no passado colonial do país e nas ideologias e preconceitos herdados desse mesmo passado; e, por outro lado o racismo diferencialista ou de exclusão, associado à perceção da população maioritária quanto a grupos incompatíveis, inassimiláveis e indesejáveis à sociedade portuguesa (2007).
Araújo tem, por outro lado, promovido trabalho de investigação acerca da produção e reprodução do eurocentrismo e do racismo em Portugal, nomeadamente na história, nas lutas políticas e lutas antirracistas, e nas políticas públicas, em particular na educação (Araújo, 2018).
No campo da Geografia, Malheiros e Fonseca adaptaram a metodologia de teste da discriminação desenvolvida por Bovenkerk para a OIT no sentido de procederem a um teste relativo ao mercado da habitação. Procuraram assim identificar situações de discriminação no acesso à habitação através de um exercício experimental. Este assentou na definição de pares de potenciais arrendatários – nacional e estrangeiro – “com características idênticas, à exceção da origem nacional e/ou étnica” (Malheiros e Fonseca, 2011: 99). Os autores identificaram diferenças no tratamento dado a portugueses e estrangeiros no mercado da habitação (e.g. na disponibilidade para aluguer de casa e as condições oferecidas - renda, fiador, caução) (Malheiros e Fonseca, 2011).
Transversalmente vários autores têm vindo a reconhecer que o racismo não é inevitável, mas sobrevive em contextos democráticos por via de processos de legitimação (Vala e Pereira, 2018), pelo que importa conhecer também esses processos para melhor os poder interromper. Neste âmbito é relevante que continuem a ser promovidos trabalhos de investigação sobre o tema (tal como teses de doutoramento - e.g. Morais, 2012, Nunes, 2013 - e dissertações de mestrado - e.g. Freitas, 2018), e que nomeadamente permitam identificar caminhos de interrupção desses processos ou de promoção de mudança social (e.g. Rebelo, 2006, Carlos, 2017).