A Constituição da Organização Mundial da Saúde, de 1946, estabeleceu que o acesso e usufruto de padrões de saúde e bem-estar constitui um direito de todos os seres humanos, independentemente da “raça, religião, orientação política, condição económica ou social.” Também o artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, reconhecendo que a prestação de saúde é um direito humano, estabeleceu que toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar. Subsequentes instrumentos enquadradores dos direitos humanos internacionais continuaram a salvaguardar o acesso à saúde e ao bem-estar como um direito humano fundamental alheio à condição e estatuto do migrante, estando os governos obrigados à salvaguarda deste direito pelo bom interesse da governança da saúde pública.
Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada a 7 de dezembro de 2000, no seu artigo 35º estabeleceu o direito à proteção da saúde, invocando que todos têm o direito a aceder a cuidados de prevenção de saúde e o direito a beneficiar de tratamento médico, nas condições estabelecidas pelas leis e práticas nacionais. Mais é estabelecido nesse âmbito que deve ser assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana na definição e execução de todas as políticas e ações da União.
A Resolução 61.17 da Assembleia Mundial de Saúde sobre Migrações e Saúde de 2008 reafirmou a necessidade da salvaguarda deste direito à proteção da saúde, recomendando o reforço de políticas e sistemas nacionais de saúde promotores da igualdade de acesso, explorando opções políticas que promovam uma melhoria da saúde dos migrantes e de monitorização e recolha de informação. Portugal assumiu também um papel importante neste âmbito, uma vez que estes trabalhos surgem na sequência da Presidência Portuguesa da União Europeia e das conclusões da Conferência Europeia organizada em Lisboa (27e 28 de setembro de 2007) acerca de “Health and Migration: better heath for all in an inclusive society”, conforme foi destacado nas Conclusões do Conselho acerca de Saúde e Migrações.
Mais recentemente, em junho de 2016, a Comissão adotou ainda um Plano de Ação para a integração dos nacionais de países terceiros residentes na União Europeia (COM(2016) 377 final), onde é reconhecido que “está provado que os problemas de saúde e a falta de acesso a serviços de saúde podem constituir um obstáculo fundamental e permanente à integração, com impacto em quase todas as áreas da vida, e influenciam a capacidade para entrar no mercado de trabalho e no sistema de ensino, aprender a língua do país de acolhimento e interagir com as instituições públicas. Sobretudo na fase de acolhimento inicial, é essencial garantir o acesso aos cuidados de saúde, mas os nacionais de países terceiros podem enfrentar problemas específicos no acesso a serviços de saúde regulares, na adaptação a sistemas de saúde desconhecidos e na comunicação efetiva com o pessoal de saúde” (COM(2016) 377 final: 12). Neste contexto o plano integra várias propostas para promover uma melhor proteção da saúde dos migrantes.
Em Portugal o artigo 64º da Constituição da República Portuguesa estabelece que todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover. Este artigo complementado pelo artigo 15º da Constituição, onde se enquadra que “todos os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”, confere o direito à proteção da saúde como um direito universal de todos os imigrantes.
A Base XXV da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de agosto), estabelecida em 1990, teve a referência de que são beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS), para além dos cidadãos portugueses e cidadãos nacionais dos Estados-membros da União Europeia, do Espaço Económico Europeu e da Suíça, “os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas residentes em Portugal”, ou seja, o acesso ao SNS por estrangeiros residentes dependia do princípio de reciprocidade. O Despacho n.º 25360/2001, de 12 de dezembro veio por isso determinar e clarificar que os estrangeiros a residir legalmente em Portugal têm acesso, em igualdade de tratamento ao dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aos cuidados de saúde e de assistência das instituições e serviços que constituem o SNS. Ainda nos termos deste despacho, os cidadãos estrangeiros em Portugal há mais de 90 dias podem aceder ao SNS mediante apresentação de um comprovativo emitido pelas juntas de freguesia. A existência deste período levou a OIM, com base no MIPEX Health Strand, a identificar Portugal como exemplo de país onde o SNS ainda não cobre os imigrantes durante os primeiros meses para desencorajar o “turismo de saúde” (OIM, 2016, p. 37), para o qual o funcionamento do SNS é visto como fator de atração. Também os imigrantes indocumentados poderão aceder ao SNS, complementado com os casos em que a negação de serviço comprometeria cuidados urgentes e vitais ou colocaria em risco a saúde pública. As taxas pagas no SNS variam em Portugal em função dos descontos efetuados para a segurança social pelo cidadão, a idade (menores de 12 anos estão totalmente isentos) e a razão da procura do SNS (isentos para saúde sexual e reprodutiva, gravidez e puerpério, planeamento familiar, doenças crónicas definidas legalmente).
Este Despacho de 2001 foi complementado em 2009 pela Circular Informativa da Direção-Geral da Saúde n.º 12/DQS/DMD, de 7 de maio, que veio reiterar o enquadrado no Despacho de 2001, voltando a clarificar o enquadramento e procedimentos em matéria de acesso aos cuidados de saúde por imigrantes nacionais de países terceiros à União Europeia, titulares de autorização de residência ou que se encontrem numa situação irregular face à legislação da imigração em vigor. Os procedimentos estabelecidos nesta circular – tal como no Despacho de 2001 - não se aplicam aos cidadãos estrangeiros evacuados a coberto de Acordos de Cooperação Internacional no domínio da saúde, estabelecidos entre Portugal e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
Portugal tem acordos de cooperação com os PALOP desde finais da década de 1970: Angola (Decreto do Governo n.º 39/84, de 18 de julho), Cabo Verde (Decreto n.º 24/77, de 3 de março; Decreto n.º 129/80 de 18 de novembro), Guiné-Bissau (Decreto n.º 44/92, de 21 de outubro), Moçambique (Decreto do Governo n.º 35/84, de 12 de julho) e S. Tomé e Príncipe (Decreto n.º 25/77, de 3 de março). Nos termos destes acordos, definem-se quotas anuais de doentes desses países a receber no serviço nacional de saúde português, sendo que Portugal presta os cuidados de saúde e as responsabilidades financeiras são repartidas (para aprofundar vd. Tese 32 publicada por este Observatório: Henriques, 2010).
Com este enquadramento legal, embora Portugal tenha mantido na mais recente avaliação do índice de políticas de integração de imigrantes (MIPEX), de 2015, a 2ª posição entre os 38 países avaliados (posição que ocupa desde 2007), no que diz respeito às políticas de saúde para imigrantes – aferidas pela primeira vez nesta edição do MIPEX de 2015 – Portugal ficou em 22º lugar, sendo recomendado ao país que os serviços de saúde melhorem as suas valências e aprofundem o acesso dos migrantes. Nessa edição de 2015, Portugal é ainda referido como exemplo de país onde a austeridade levou a medidas que conduziram a um aumento da iniquidade no acesso dos imigrantes à saúde (OIM, 2016, p. 4 e 42-43).
O acesso aos cuidados de saúde por parte dos imigrantes em Portugal tem sido alvo de atenção e de medidas específicas no âmbito da política pública portuguesa de integração de imigrantes, desde logo no I Plano para a Integração dos Imigrantes, 2007-2009 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 63-A/2007, de 3 de maio) e no II Plano para a Integração dos Imigrantes, 2010-2013 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 74/2010, de 17 de setembro), bem como no atual Plano Estratégico para as Migrações 2015-2020 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 12-B/2015, de 20 de março), em curso até 2020.
No domínio da relação entre migrações e saúde em Portugal deve ainda atender-se a acordos que Portugal tem estabelecido com alguns países para o recrutamento de profissionais de saúde (e.g., Cuba em 2009 e 2014, Uruguai em 2008, Costa Rica em 2011, Colômbia em 2011). Ao nível da imigração individual de médicos, o estado participou ainda no Programa Integração Profissional de Médicos Imigrantes (Portaria n.º 925/2008, de 18 de agosto e Portaria n.º 674/2010, de 11 de agosto) enquanto financiador, deixando a coordenação à Fundação Calouste Gulbenkian e a execução ao Serviço Jesuíta aos Refugiados. Aos médicos participantes neste programa foi facultada a frequência de um curso de língua portuguesa, a frequência de cursos de português-técnico orientados para a medicina, a possibilidade de prestarem provas de português em faculdades de medicina, a realização de estágios de quatro meses em hospitais públicos em diferentes especialidades, a realização de exames de equivalência ao curso de Medicina, a inscrição na Ordem dos Médicos, e o ingresso no internato médico.
Embora o enquadramento institucional na vertente das migrações e saúde mais evidente e direto seja inerente ao Ministério da Saúde, no elencar das atribuições do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) surge a asserção de que a saúde é uma das dimensões de relevo para a integração de imigrantes (alínea j) do n.º 2 do artigo 3º). Nesse sentido, o seu órgão de consulta, o Conselho para as Migrações, integra um representante da Direção-Geral da Saúde (alínea n) do n.º 2 do artigo 8º) do Decreto-Lei n.º 31/2014, de 27 de fevereiro). Estas disposições concretizam-se nos estatutos do ACM, estando entre as atribuições do Departamento de Apoio à Assistência Migratória (artigo 5º), através dos Centros Nacionais de Apoio à Integração dos Migrantes (CNAIM), o apoio e encaminhamento dos imigrantes para as instituições públicas e privadas habilitadas à prestação de cuidados de saúde (d), bem como apoiar imigrantes reformados em turismo de saúde (g) (Portaria n.º 227/2015, de 3 de agosto).
É também de concretizar que o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem (Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto), cuja aplicação é acompanhada pela CICDR, presidida pelo ACM, conta os cuidados de saúde entre os seus âmbitos (artigo 2º, a) da Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto) e proíbe a discriminação em razão da limitação de acesso aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou privados. Em conformidade, um dos membros da CICDR é designado pelo membro do Governo responsável pela área da saúde (artigo 7º da Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto).
Poderá aprofundar o conhecimento acerca deste enquadramento legal e institucional através das seguintes hiperligações: Manual de Procedimentos: Acesso à Saúde de Cidadãos/as Estrangeiros/as, o Manual de Acolhimento no Acesso ao Sistema de Saúde de Cidadãos Estrangeiros, e a Informação para Obtenção de Cuidados de Saúde em Portugal por Cidadãos Estrangeiros.