2. As mulheres migrantes em Portugal

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2. As mulheres migrantes em Portugal

No século XXI também Portugal tem protagonizado a tendência para a feminização da imigração, tendo o número de mulheres estrangeiras residentes vindo a ultrapassar o dos homens estrangeiros residentes desde 2012. Esta evolução não tem passado despercebida à comunidade académica, sendo de destacar, logo em 2005, o trabalho de Karin Wall, Cátia Nunes e Ana Matias sobre mulheres imigrantes em Portugal, com enfoques nas áreas das suas trajetórias, dos seus problemas e das políticas de que são alvo. No ano seguinte João Peixoto coordenou um volume sobre os percursos laborais e modos de inserção socioeconómica das mulheres imigrantes em Portugal. Já o texto publicado por Beatriz Padilla em 2007 sobre as mulheres imigrantes brasileiras incide, para além da esfera laboral, nas motivações, experiências e sentimentos das protagonistas numa sociedade de acolhimento que frequentemente as reduz a estereótipos. Esta investigadora viria a reincidir, juntamente com Jorge Malheiros e Frederica Rodrigues, num trabalho que se debruçou especificamente sobre mulheres imigrantes empreendedoras em Portugal. Igualmente de interesse é o volume organizado nesse mesmo ano por Marzia Grassi e Iolanda Évora e dedicado ao tema do género e migrações cabo-verdianas. Em 2012, destaca-se o trabalho de Pedro Góis e José Carlos Marques sobre as consequências sociopolíticas da feminização das migrações de (e para) Portugal, num estudo realizado no âmbito do Fórum Gulbenkian Migrações. Mais recentemente (2016), com uma perspetiva crítica das teorias feministas para o entendimento das migrações das mulheres, Ana Neves, Maria da Conceição Nogueira, Joana Topa e Estefânia Silva, realizam num artigo científico uma discussão teórica e sistematização do trabalho que se tem vindo a fazer em Portugal nesta área.

Para além desta atividade académica destaca-se brevemente neste espaço algumas das características do contexto institucional e das políticas públicas para mulheres imigrantes residentes em Portugal.

 

Enquadramento institucional

As principais entidades públicas a ocuparem-se na interseção da condição de imigrante e de mulher em Portugal são o Alto Comissariado para as Migrações, I.P. (ACM), a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).

O ACM é um instituto público que prossegue atribuições da Presidência do Conselho de Ministros (PCM) nas áreas da integração. A sua missão tríplice é colaborar com o governo na definição, execução e avaliação de políticas públicas que tenham pertinência no que respeita a 1) atrair migrantes, 2) integrar imigrantes e grupos étnicos e 3) gerir e valorizar a diversidade entre culturas, etnias e religiões (Decreto-Lei n.º 31/2014, de 27 de fevereiro). O Conselho para as Migrações - órgão de consulta, apoio e participação na definição das linhas gerais de atuação do ACM - integra um representante da CIG.

A CIG, por sua vez, tem por missão “garantir a execução das políticas públicas no âmbito da cidadania e da promoção e defesa da igualdade de género” (Decreto Regulamentar n.º 1/2012, de 6 de janeiro), sendo pois o seu enfoque as questões de género em geral. Por sua vez, a CITE é um órgão colegial tripartido que tem por missão prosseguir a igualdade e a não discriminação entre homens e mulheres nas esferas conexas do trabalho, emprego e formação profissional. Colabora ainda na aplicação de disposições legais e convencionais, não apenas nesta matéria como também no que respeita à proteção da parentalidade e à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal, no setor privado, no setor público e no setor cooperativo (Decreto-Lei n.º 76/2012, de 26 de março). O seu enfoque é assim circunscrito às questões de género na esfera profissional.

A especificidade dos seus portefólios não obsta contudo a que estas entidades articulem esforços na prossecução de políticas intersectoriais concretas, como veremos no próximo ponto.

 

Políticas públicas para mulheres imigrantes

Em Portugal têm surgido inúmeros planos de ação que clarificam políticas públicas e definem medidas das quais as mulheres imigrantes residentes devem ser beneficiárias diretas ou indiretas.

O enquadramento do Plano Estratégico para as Migrações (2015 -2020) (Resolução do Conselho de Ministros n.º 12-B/2015) conclui precisamente vincando que esta estratégia “deverá promover a igualdade entre homens e mulheres em todos os eixos prioritários”. Prevê ainda, no domínio da integração e capacitação, que sejam “reforçadas as medidas tendentes à promoção da igualdade de género e ao reforço da integração pessoal, profissional e cívica nas mulheres imigrantes na sociedade portuguesa”. Em termos de medidas específicas, é de destacar a nona, que estipula a “promoção da participação das mulheres imigrantes no movimento associativo”, prevendo como ações a “mobilização das mulheres imigrantes para a participação no movimento associativo” e a “informação às mulheres imigrantes sobre os seus direitos e deveres específicos enquanto mulheres”. São de destacar ainda ações relativas à vigésima primeira e vigésima terceira medidas. Trata-se, em primeiro lugar, ao nível da “promoção de informação sobre direitos e deveres dos trabalhadores imigrantes”, de realizar “ações de sensibilização e informação promovidas pelo ACM, em articulação com a CITE e com a CIG, relativas à igualdade e não discriminação de género, nomeadamente na área da parentalidade, igualdade salarial, conciliação entre trabalho e família e assédio moral e sexual”. Em segundo lugar, ao nível da “promoção da melhoria das condições do trabalho”, de realizar “ações inspetivas nos locais de trabalho, promovendo a cidadania e a igualdade de género através da integração dos imigrantes, do combate à utilização ilegal de mão-de-obra (nomeadamente o trabalho não declarado), da discriminação racial e do tráfico de seres humanos”.

Deve ainda destacar-se o V Plano Nacional para a Igualdade – Género, Cidadania e Não Discriminação 2014-2017 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2013) que refere, no que concerne a promoção da igualdade entre mulheres e homens nas políticas públicas, que “os estudos socioeconómicos apresentam, invariavelmente, as mulheres na base da pirâmide social e em situação de discriminações múltiplas, como seja o caso (…) das mulheres imigrantes”, entre outras. Este diagnóstico leva à inclusão entre os objetivos estratégicos da promoção de “competências de base necessárias à construção e desenvolvimento de projetos de vida inclusivos junto de grupos específicos de mulheres em situação de maior vulnerabilidade, designadamente (…) mulheres imigrantes”, entre outras. Temos assim que a trigésima quinta medida do plano é precisamente a promoção da “alfabetização e a capacitação das mulheres imigrantes”, entre outras, cabendo a responsabilidade à PCM/CIG e MEC e estando envolvidas na execução a PCM/ACM e as ONG. O objetivo desta medida é o “aumento da alfabetização e da capacitação das mulheres imigrantes”, entre outras”.

Já o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género, 2014-2017 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2013) tem mais medidas sobre esta temática. A nona medida visa a realização de “ações de sensibilização sobre violência doméstica e de género dirigidas a imigrantes, entre outros, é da responsabilidade da PCM/ACM, estando envolvidas na sua execução a PCM/CIG, os municípios e as ONG, e sendo o seu objetivo o aumento “da sensibilização e do conhecimento sobre a problemática da violência doméstica e de género no seio das comunidades imigrantes” e outras. Por sua vez, a trigésima segunda medida deste plano, ocupa-se de reforçar “a informação sobre violência doméstica e de género junto das comunidades imigrantes, nomeadamente sobre o acesso aos recursos existentes. As entidades responsáveis e envolvidas na execução desta medida são as mesmas que na medida anterior e o seu objetivo é a dotação dos espaços de comunicação do ACM “de materiais informativos destinados às comunidades imigrantes, em matéria de violência doméstica e de género”. A alínea f) da quadragésima segunda medida visa os “profissionais que trabalham na área do acolhimento e integração de imigrantes” enquanto “profissionais que intervêm, direta ou indiretamente, na área da violência doméstica e de género” e procura ampliar a sua formação. As entidades responsáveis por esta medida são a PCM/CIG, o MS, o MEC e o MSESS, estando envolvidas na sua execução o MJ/INMLCF, I.P. e as ONG. Em termos de objetivos, trata-se de 1) disponibilizar “aos/às profissionais das diversas áreas de formação específica em violência de género/violência doméstica”, 2) criar um “referencial e manual de apoio à formação, orientado para a intervenção junto de vítimas particularmente vulneráveis” e 3) capacitar “os(as) profissionais para intervir junto de vítimas particularmente vulneráveis”.

Por fim, ainda no contexto do V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género, 2014-2017, temos a quinquagésima terceira medida: “adotar um instrumento de registo nos CNAI e CLAII, para recolha de informação do número de casos de violência doméstica, registados nas comunidades imigrantes”, que é da responsabilidade da PCM/ACM, estando envolvidas na sua execução a PCM/CIG, os municípios e as ONG. Os objetivos desta medida são a “criação de um instrumento de registo de casos de violência doméstica” e a produção de “informação sobre a incidência da violência doméstica nas comunidades imigrantes”.

Noutra vertente, o III Programa de Ação para a Prevenção e Eliminação da Mutilação Genital Feminina 2014 – 2017, que foi publicado como anexo ao precedente (Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2013), refere na sua introdução que a Organização Mundial de Saúde “coloca Portugal entre os países em risco no que diz respeito à prática da MGF, já que as comunidades imigrantes residentes em Portugal provenientes de países onde a MGF existe poderão continuar esta prática, quer no nosso país, quer enviando menores ao país de origem”. Ainda na mesma secção, o texto cita a “Resolução (2010/C 285 E/07) sobre a eliminação da violência contra as mulheres, que exorta os Estados-Membros a adotarem as medidas adequadas para pôr termo à MGF, nomeadamente informando as comunidades imigrantes de que a MGF constitui uma séria agressão à saúde das mulheres e uma violação dos direitos humanos, e aplicando ou adotando disposições legais específicas sobre esta matéria”. Este plano é coordenado pela CIG, sendo esta coadjuvada por um grupo de trabalho inclui três associações de imigrantes representativas de comunidades de nacionais de Estados onde se pratica a MGF, a indicar conjuntamente pela CIG e pelo ACM. A discussão da primeira área estratégica deste programa, a prevenção, refere que “a sensibilização e a prevenção são indispensáveis à erradicação da MGF” e o “envolvimento das associações de imigrantes ou das organizações e interlocutores que, de alguma forma, são representativos das comunidades revela -se particularmente eficaz neste propósito”. Desse modo, as associações de imigrantes são envolvidas na execução da segunda medida, nomeadamente na organização de “estratégias comunitárias de combate à MGF através da criação de redes de ação em territórios de risco, constituídas por interlocutores locais privilegiados”. As entidades responsáveis por esta medida são o MS/DGS e o MEC/DGE, estando envolvidos na execução todos os membros do grupo de trabalho, bem como municípios, escolas, equipamentos de saúde, IPSS, ONG e associações de imigrantes. Os objetivos desta medida são o “reforço das parcerias entre as escolas, equipamentos de saúde, municípios, IPSS, ONG e associações de imigrantes”, o “apoio comunitário” e a “eventual sinalização de situações de MGF já realizada ou iminente entre as meninas, raparigas e mulheres”.

As associações são também objeto da terceira medida, nomeadamente o incentivo e apoio às “organizações não-governamentais, designadamente associações de imigrantes no desenvolvimento de atividades que contribuam para a prevenção e a eliminação de práticas tradicionais nocivas, nomeadamente a MGF”. Aqui a entidade responsável é PCM/ACM, estando envolvidas na execução a PCM/CIG e as ONG. Os objetivos desta medida são o “envolvimento das organizações representativas das comunidades onde a MGF se pratica” e o “incremento do número de projetos na comunidade sobre MGF”.

A décima quinta medida elencada neste programa é “estabelecer contactos com líderes religiosos e interlocutores privilegiados das comunidades imigrantes, com vista à prevenção e eliminação da MGF”. A entidade responsável é a PCM/CIG/ACM e estão envolvidas na sua execução as ONG e representantes das comunidades. Em termos de objetivos, trata-se aqui, por um lado, de sensibilizar e mobilizar os líderes religiosos e os interlocutores privilegiados e, por outro, de identificar e adotar “boas práticas de intervenção nas comunidades onde a MGF está referenciada”.

No que respeita à segunda área estratégica deste programa, a integração, a sua discussão refere que: A capacitação das mulheres imigrantes pertencentes às comunidades em risco é, do ponto de vista estratégico, fundamental para o propósito da erradicação da prática, no pressuposto de que, quanto mais informadas, preparadas e autónomas, melhor podem desencadear focos de resistência individual ou coletiva. Daí decorre a décima sexta medida: “promover o associativismo e o empreendedorismo das mulheres imigrantes, particularmente as oriundas de países onde existam práticas tradicionais nocivas, nomeadamente a MGF”. A responsabilidade por esta medida é da PCM/ACIDI, I.P., encontrando-se envolvidas na sua execução “associações representativas de imigrantes e/ou que trabalhem com imigrantes” e as próprias mulheres imigrantes. O objetivo da medida é o “aumento do número de mulheres apoiadas”.

A última medida deste programa com relevância para o tema em apreciação é a vigésima terceira, que diz respeito à realização de “ações de formação para profissionais de mediação sociocultural, técnicos(as) do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e técnicos(as) dos Centros de Apoio e Integração de Imigrantes”. A entidade responsável por esta medida é a PCM/ACIDI, I.P. e está envolvido na sua execução o MS/DGS. O objetivo é a “aquisição de conhecimentos sobre MGF por parte dos(as) profissionais envolvidos(as)”.

Por último, mas não menos importante, o III Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos, 2014-2017 (Decreto do Presidente da República n.º 127/2013, de 31 de dezembro). Este é um documento assumidamente preocupado com as mulheres e as raparigas que, segundo dados da ONU citados no diploma, são, em conjunto, três em cada quatro vítimas à escala global do tráfico de seres humanos. Note-se ainda que, segundo a mesma fonte, três em cada cinco pessoas traficadas terão por destino a exploração sexual. É de particular relevância para o tema de mulheres migrantes notar que o plano integra uma medida, a sua quinta, orientada para a produção e difusão de “material informativo, em colaboração com as comunidades imigrantes, em diferentes línguas, para prevenir as diversas formas de tráfico”. Esta medida tem por entidade responsável a PCM/CIG/ACM, estando envolvidas na sua execução o MAI/SEF, o MAM, o MS/DGS/ARS, o MSESS/ISS, I.P., a RAPVT e as ONG. O objetivo desta medida é a “produção anual de material informativo em diversas línguas”.

Como se depreende desta breve síntese, os mandatos das instituições e os objetivos concretos das políticas que criam, mormente numa área cujo perfil tem vindo a ser elevado tanto em termos quantitativos (feminização dos fluxos migratórios e da população imigrante residente) como políticos (importância da interseccionalidade em termos internacionais e nacionais), criam várias oportunidades de reflexão, avaliação e diálogo por e com a academia.